19 de maio de 2016

Fusão do cotidiano de mulheres aleatórias


Não sei se sou só eu mas, geralmente, meu dia melhora bastante quando acabo esbarrando com um(a) desconhecido(a) que me trata bem. Aquelas pessoas que veem que você sentou longe da sua companhia de viagem e perguntam se você quer trocar de lugar com elas, ou pessoas que simplesmente cedem o lugar pra você, sem necessidade, sem obrigatoriedade por lei de preferência, sem culpa, só porque a pessoa olhou pro seu rosto e sentiu algo bom. São as famosas pequenas coisas do dia que melhoram o seu dia por completo, ou talvez até a sua semana.

Surpreendentemente e felizmente, eu esbarrei com três pessoas do tipo num dia só. E ainda consegui falar com dois gatinhos vira-latas na rua, o que pra mim é uma vitória. Eu achava que meu dia estava ótimo e que a energia que me cercava estava algo sem igual de tão bom, até que no meio dessa gente, estava uma mãe. Uma mãe sem filho.

A moça notou que minha mãe estava com marcas nos braços causadas pelas bolsas que carregava. Preocupada, ela ofereceu ajuda à minha mãe que aceitou imediatamente. Ambas começaram a conversar sobre como era difícil viver a vida de uma mulher-mãe-trabalhadora, uma vida não dá descanso nunca, até que (provavelmente como um recurso de desabafo) a mulher simplesmente desabafou que havia perdido o filho. Dezoito anos. Eu não pude ignorar o fato de que o rapaz era um ano mais novo que eu, ele simplesmente acabara de fazer dezoito. "Foi acidente?" minha mãe perguntou e ela disse "Não. Mataram.". A gente deveria ter ficado surpresa, afinal não foi em batida de carro, nem nada. Não foi uma casualidade da vida, um evento cotidiano que acabou em desastre. Uma hora ele estava ali, e na outra não estava mais. Porque o mataram.

A moça disse que esse era o segundo filho que ela enterrava, já tinha enterrado outro filho também com dias. Fiquei calada o tempo todo e deixei minha mãe escutar e aconselhar a moça, afinal eu não sou mãe. Elas começaram a trocar experiências sobre perdas: minha mãe falando sobre os anos que a gente passou com a minha vó com Alzheimer e depois como foi perde-la. Contou que terminou a faculdade na marra, porque ela trabalhava, estudava e quando chegava em casa tinha que trocar frauda, limpar suas feridas, dar comida. ‘’Eu dormia todo dia três horas da manhã pra no dia seguinte estar de pé pra trabalhar. ’’, disse minha mãe. A moça deu o olhar mais solidário que ela poderia enquanto escutava minha mãe contar como foi ver uma mulher forte, que nunca parou de trabalhar e de lutar pra sobreviver, nordestina, guerreira, simplesmente ir perdendo toda essa sua identidade aos poucos e ir ficando cada vez mais vulnerável, cada vez mais frágil.

A moça disse que as pessoas falavam pra ela que ela deveria se manter forte porque ela tem mais uma filha e dois netos, que eles precisavam dela: "Mas tem dias que eu não consigo..." ela admitiu. Eu não aguentei ouvir isso e soltei, com um receio enorme, "Moça, antes de a senhora ser mãe e avó, a senhora existe. A senhora é uma pessoa." ela me olhou como se ninguém nunca tivesse falado isso pra ela, e concordou. Acho que até ela se surpreendeu por ter concordado.

Contou que já havia tido depressão e que ela e seus filhos tinham medo de isso ocorrer de novo com ela. Disse que se fosse necessário ela buscar ajuda, e principalmente se ajudar. Minha mãe compartilhou da mesma opinião mas acrescentou que ela deveria dar um espaço pra dor, afinal ela estava de luto. Ela pode chorar, ela pode ficar perdida. Ela tem esse direito. Teve um momento em que ela contou que sorriu sem perceber e pensou "Meu deus que que eu tô fazendo? Eu não posso sorrir."

Ela pegou uma foto do filho e mostrou pra minha mãe, e isso despertou a atenção de uma outra mulher do metrô. Logo as duas estavam lá, ouvindo a moça, e eu ali no meio. Reconhecendo que eu não poderia mensurar a dor dessa mulher, e nem acalmar ela por mais que quisesse muito. Elas ficaram se ajudando e se ouvindo, até uma hora em que a moça não aguentou e começou a lacrimejar. Eu olhei pra ela e segurei na mão dela, e ela caiu aos prantos no meio do metrô. As pessoas olharam, mas eu só sabia falar pra ela chorar sim. Que eu estava ali. Minha mãe do lado dela também dizia coisas do tipo, do outro lado estava a senhora que veio depois. 

Eu não posso ignorar de que aquela mulher, por algum motivo, apareceu no meu dia. Se eu disser que não achei que foi coisa de Deus, eu estaria mentindo. Toda a energia que eu absorvi, todas as coisas boas que eu senti no meu dia, eu tentei ao máximo passar pra essa mulher. E foi impossível não ver a gratidão nos olhos dela.

Não posso não atribuir isso ao feminismo, um movimento que me fez olhar para as outras mulheres de uma forma muito mais fraternal. Eu as valorizo de forma que nunca fiz antes. Talvez sororidade seja isso. A gente se entender sem se conhecer. A gente ter empatia, porque sabemos como é ser mulher nessa sociedade. Ser uma mulher, periférica, negra. Moradores da zona norte/baixada do Rio de Janeiro não tem paz, e pior quando se é uma mãe.

Depois quando chegou na estação Pavuna, estação final, nós nos levantamos e ela olhou pra todas nós e agradeceu com todo o coração. A outra moça segurou a mão dela e disse "Força", a minha mãe falou pra ela cuidar do espiritual dela e eu só fiz um carinho no braço dela e sorri com os olhos.

Meu dia terminou com mulheres tendo empatia por outras mulheres. Eu, mulher, ajudei uma outra mulher, com outras mulheres. Enquanto eu contava essa história pra outras mulheres, as mesmas se emocionaram. E que assim seja: nós, mulheres, sejamos uma pela outra. Sempre.

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